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Estes textos de origens, naturezas e épocas diversas, compõem um painel de memórias de Lygia Fagundes Telles, com destaque para seus encontros e diálogos com personalidades literárias que, de um modo ou de outro, marcaram a sua formação como escritora. A autora passa em revista as conversas com Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, as visitas a Jorge Amado e Zélia Gattai, a amizade com Hilda Hilst, um diálogo com Jorge Luis Borges e uma entrevista concedida à amiga Clarice Lispector.
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Foi o que comecei por lhe dizer durante aquele nosso estranho chá na Confeitaria Vienense ao som de violinos e piano. O céu tão limpo e o terno de linho de Mário de Andrade era tão branco. Lá sei se estou sendo exata com os fatos, mas as emoções, essas sim, são as mesmas que passo a narrar em seguida. A ênfase com que respondia às suas perguntas, lisonjeada com tanta curiosidade. Comecei por dizer que a minha ousadia, tudo somado, se resumia nisso, assumir a minha vocação.Ele estranhou, mas eu falei em ousadia? Tomei meu gole de chá: escrever não era considerado um ofício de homem? Ter entrado para uma escola masculina como a Faculdade de Direito, não era também desafiar um preconceito? Nos vestibulares, entraram cerca de duzentos rapazes e seis ou sete mocinhas... No curso, matérias tão fortes que o professor de Medicina Legal, antes de começar certas aulas, chegava a advertir que se as moças quisessem sair, podiam sair, nenhum problema.Mário de Andrade achou muita graça, E vocês saíam mesmo?
Mário de Andrade
Almoçamos num restaurante do bairro, o sol delicado a se infiltrar por entre a folhagem das grandes árvores. Achei-a mais magra com seus claros olhos de cantos caídos, o apertado turbante de lã do mesmo tom do casaco de couro e as botas do mesmo tom esbraseado da folhagem. Pouca gente no bistrô modesto. O garçom tratou-a com respeitoso afeto, devia ser uma presença constante na casa. Abriu a grande bolsa e tirou de dentro o livro que me ofereceu, La Femme Rompue. Cortou com um gesto o agradecimento que ensaiei fazer e com aquela letra sem fronteiras, fez a dedicatória. Em seguida, olhou firme nos meus olhos e assim inesperadamente fez a pergunta, Você tem medo de envelhecer?Baixei a cabeça e fiquei muda, pensando. Na realidade, começava a ensaiar a resposta naquele meu francês tropeçante, cheio de curvas e ela preferia a linha reta. Tocou de leve na minha mão, Então está com medo.Espera um pouco, eu não disse isso, comecei por contestar mas tão fracamente que ela sorriu enquanto consultava o cardápio. Aconselhou-me o melhor prato da casa. E começou a falar pausadamente, que nada me escapasse enquanto ia acertando suas ideias: todo aquele que faz o elogio da velhice, esse não pode mesmo amar a vida, não pode amar a vida.
Simone de Beauvoir
Aproximei-me. Ele me reconheceu pela voz. Líria! disse e sorriu. Inclinei-me para apertar-lhe a mão que tremia. Sim, esperava pelo secretário, devia embarcar de volta no dia seguinte.Eu sabia que não ia vê-lo mais e o tempo tão curto e aquela festa borbulhando em redor. Trocamos algumas palavras. E inesperadamente, fiz a pergunta, o que ele gostaria de dizer assim no feitio de uma despedida, ou melhor, de uma mensagem? Evitara a palavra mensagem e foi a única que me ocorreu.Ele fixou em mim o olhar de névoa e a larga cara abriu-se numa expressão iluminada: O sonho! ele exclamou. Acreditar no sonho, entregar-se ao sonho porque só o sonho existe. No dia em que meu amigo escritor deixou de sonhar, matou–se.
Jorge Luis Borges
(...) fiquei lembrando da viagem que fizemos juntas para a Colômbia, um congresso de escritores, tudo meio confuso, em que ano foi isso? Ah, não interessa a data, estávamos tão contentes, isso é o que importa, contentes e livres na universidade da cálida Cali. Combinamos ir no mesmo avião que decolou sereno mas na metade da viagem começou a subir e a descer, meio desgovernado. Comecei a tremer, na realidade, odeio avião mas por que será que estou sempre metida em algum deles? Para disfarçar, abri um jornal, afetando indiferença, oh! a literatura, o teatro. Clarice estava na cadeira ao lado, aquela cadeira que comparo à cadeira de dentista, cômoda, higiênica e detestável. Então ela apertou o meu braço e riu. Fique tranquila porque a minha cartomante já avisou, não vou morrer em nenhum desastre! E o tranquila e o desastre com aqueles rrr a mais na pronúncia que eu achava bastante charmosa, desastrrre!Desatei a rir do argumento. A carrrtomante, Clarice?... E nesse justo instante as nuvens se abriram numa debandada e o avião pairou sereníssimo acima de todas as coisas, Eh! Colômbia.
Clarice Lispector
Pensei então no Lobato que fui visitar quando estivera preso no velho e frio casarão da Avenida Tiradentes. Eu tinha acabado de entrar para a Faculdade de Direito quando de repente, num impulso de audácia, resolvi visitar o escritor dos meus verdes anos. Entrei no pátio da Escola para a primeira aula quando um colega veio me contar que ele fora preso por crime de opinião e achei que devia levar-lhe minha solidariedade. Quando o guarda do presídio pediu meus documentos eu entreguei-lhe minha carteirinha de estudante. Ele teve uma expressão divertida e encolheu os ombros, que eu entrasse mas antes teria que vistoriar a minha bolsa, nenhuma arma? Na saleta com algumas cadeiras e uma mesa tosca lá estava o escritor de terno, gravata e barba feita. E tão bem-disposto que cheguei a tropeçar nas palavras, afinal, viera trazer-lhe o meu consolo e era eu que devia ser consolada. Falei sobre os seus livros que ocupavam duas prateleiras da minha estante mas ele desviava o assunto, queria saber dos meus estudos, do meu trabalho. Eu mal disfarçava a minha surpresa por vê-lo assim tão desligado daquela prisão, daquele castigo. Sim, eu já sabia que era um homem que sempre fugira das honrarias, das homenagens, avesso a formalismos, preconceitos. Mas não esperava vê-lo assim como que fortalecido, crepitando como uma fogueira. E sem perder o humor, sem perder a ironia de quem, em meio do caos político reinante, não podia mesmo levar coisa alguma a sério. Perguntei-lhe pela saúde, já tinham me falado de sua constituição delicada.— Que saúde?! perguntou e riu gostosamente. Tomou um ar secreto, confidencial: O importante é não entregar os pontos, fincar o pé.
Monteiro Lobato