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Lançamento da Biblioteca Azul traz a mais fina prosa da portuguesa Ana Cássia Rebelo, que ocupa um lugar entre a tradição e inovação ao relatar o cotidiano feminino em um diário íntimo Ana Cássia Rebelo é uma mulher com suas horas bastante ocupadas, dividindo seu tempo entre o emprego como advogada numa repartição, os três filhos ainda pequenos e um casamento já desgastado. Nessa rotina, que oscila sempre entre o tédio da segurança e o desejo do inesperado, Ana encontra lugar para escrever. E foi assim que surgiu, em 2006, o blog Ana de Amsterdam, em que ela ia registrando esse movimento pendular entre pequenas vitórias e grandes angústias. Das postagens do blog, imensamente literárias apesar de intrinsecamente efêmeras, o jornalista e crítico português João Pedro Jorge pôde organizar uma obra que funciona como diário íntimo, em que os pequenos textos são datados, e vão desenhando uma personagem rica, um tanto misteriosa, capaz de confundir o leitor entre uma doçura maternal e uma rascante agressividade. Com um histórico depressivo, muito inteligente e sensível, o que vemos na sucessão dos dias dessa narrativa fragmentada é o retrato subjetivo da chamada mulher moderna, esse ser quase indefinível. Ana sente desejo e nega-o, ama os filhos, mas se sente sobrecarregada, se apega à vida por detalhes, e encontra o sentido perdido no cotidiano doloroso em um pôr do sol bonito numa cidade indiana. Com parte da família em Goa, essa terra misteriosa em que a Índia fala a língua portuguesa, Ana desenha no país distante a possibilidade de descobertas – como antigos navegadores buscavam especiarias. A mesma busca se dá por uma sexualidade crua, em que não há tabus, e a frigidez, a masturbação, o desejo doente são temas tratados corriqueiramente, conceitualmente e na linguagem – limpa, crua, direta. O resultado desse conjunto coeso de pequenas narrativas é um livro escrito em uma prosa brilhante, que se a filia a nomes como Sylvia Plath e Virginia Woolf, no que todas têm de prosadoras poderosas e marcantes – também finca o pé em certa tradição nacional portuguesa, e o conjunto de fragmentos do livro lembra o Livro do desassossego, de seu conterrâneo mais ilustre. Que o leitor se embrenhe nessa prosa primorosa. Que descubra a literatura contemporânea portuguesa, e que, atentamente, descubra o poder da narrativa feminina. “Uma das vozes mais aguardadas no panorama editorial português. As suas palavras não desiludem a expectativa gerada.” – O PÚBLICO
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Nunca me cruzei com o blog Ana de Amsterdam, e se ouvi a música com o mesmo nome, do Caetano Veloso, passou-me bem ao lado.
O blog, e após ler este livro, parece-me a versão moderna, bem século XXI, dos antigos diários. Em outros tempos os diários eram objectos quase secretos, fechados a cadeado, longe das vistas dos curiosos, onde meninas e mulheres debitavam os seus sonhos, amores, preocupações, frustrações...enfim os pensamentos mais íntimos e pecaminosos. Depois chegou a internet, e começou-se a partilhar com o mundo aquilo que até aí era privado. Ainda bem, assim podemos observar vida alheia, embora sejam poucas as vidas que têm realmente interesse.
Em posts curtos e avulsos a autora fala de forma despudorada de problemas comuns a um sem número de mulheres: depressão, solidão, maternidade, monotonia, apatia, falta de desejo, tristeza, suicídio etc.
Não sei o que fazer com a tristeza quando ela toma conta de mim. Não a convido. Não sei porque vem, derramando tentáculos de dor. Sinto-a fisicamente, como se fosse um bicho, um parasita. Petrifica-me. Torno-me um cristal baço. Uma mancha de bolor. Uma estátua grotesca. Repelente. Torno-me uma fêmea de jacaré ou caimão. Sou uma fêmea de caimão. Sei, com precisão, onde, no meu corpo, se aloja a tristeza. Sinto-a aninhada na traqueia, perto da laringe e da faringe. Nas imediações da glote. Provoca-me náuseas. Vontade de vomitar, também. Hoje, durante o almoço, transformou-se em lágrimas e escorreu sobre a sopa de agriões.
É um livro perturbador, angustiante, que incomoda, que nos tira da zona de conforto, que nos questiona sobre o papel da mulher na sociedade.
Gosto da forma directa de abordar os temas, gosto do politicamente incorrecto, da transparência e do assumir opiniões diferentes da norma instituída.
Detesto estar grávida. Sempre detestei. Perco o controlo do meu corpo. Passo a ser um mero invólucro. Uma cabaça. Um casulo.
Alguns textos são de uma sinceridade visceral, esmagadora.
Sentada na sanita, as calças do pijama enroladas no chão, o cheiro adocicado da urina a espalhar-se pela manhã, pus-me a contá-los, setenta e um, setenta e dois, setenta e três, enfim, um coquetel de considerável letalidade. Além de antidepressivos e ansiolíticos, tenho também vários analgésicos, cinco Clonix e sete Voltaren, não servem para matar, mas sempre ajudam à festa. (...) Não tenho coragem de os tomar, mas aliviava-me saber que os tenho ali, à mão de semear, prontos a livrar-me de uma angústia maior.
A busca incessante por algo maior é constantemente marcada por decepções.
Pesa-me a rotina dos dias iguais. É como se os dias da minha vida tivessem sido produzidos em massa. Em fábricas assépticas, reluzentes. Todos com o mesmo peso, a mesma forma, o mesmo rótulo, as mesmas cores pardacentas. Inodoros, com um sabor indefinido, aguado. Pouco apetecíveis. Dias iguais. Sempre iguais. Iguais como os pacotes de leite, de farinha, de açúcar, que se enfileiram, aprumados, nas prateleiras dos supermercados. Pesam-me os silêncios, as ausências. Às vezes, tenho a sensação de que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza. Uma espécie de tumor que cresce à medida que os dias passam iguais. E se um dia o bicho-tumor tomar conta de mim? E se um dia ele rebentar dentro de mim, espalhando, pelos meus órgãos, tecidos, artérias, pedaços putrefactos dos meus dias?
Se Ana Cássia Rebelo é Ana Clara ou vice-versa pouco importa. Ana tem uma voz muito própria, muito fora da caixa e acaba por representar-nos a todas.
Suspirava de alívio por não ter herdado as características físicas da minha avó paterna, Maria Aninhas Valadares, mas estranhava a importância que a minha mãe dava ao torneado das nossas pernas. Vivíamos num mundo de mulheres recentemente emancipadas — na certeza da legalidade escrita, as mulheres eram iguais aos homens. Proibia-se a discriminação. As mulheres tinham exactamente os mesmos direitos que os homens. Bastava-lhes o seu trabalho, o seu valor e competência para serem reconhecidas. As mulheres haviam de ser amadas apenas pelas suas ideias, pela firmeza do seu carácter, pela sua sensibilidade. A conversa da minha mãe, dando importância ao corpo, antecipando um tempo de volúpia e desejo, ofendia, e de que maneira, o meu precoce feminismo, era um retrocesso intolerável, um sinal de atavismo e ignorância. Havia, porém, muito acerto nas suas palavras. Sei-o agora, o corpo é uma arma, e uma mulher deve usá-lo em todas as ocasiões: fazer pontaria, olhar pela mira telescópica e puxar o gatilho sem misericórdia ou piedade.